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OPINIÃO. Carta da jovem argelina destapa dura realidade do ténis, mas tem o endereço errado
Tem-se ouvido muitas vezes durante esta quarentena o lugar comum de que “esta crise pandémica está a trazer ao de cima o melhor de cada ser humano”. Multiplicam-se as ações de solidariedade, as demonstrações de carinho e saudades daquilo que sempre tivemos e agora não temos e uma ideia de batalha coletiva, de que todos estamos no mesmo barco, que é um pouco rara nos tempos em que vivemos.
O Mundo vive uma situação muito complicada. Muitos setores económicos estão absolutamente parados. Alguns vão demorar anos a recuperar o ritmo. Milhões de pessoas vão para o desemprego e outros tantos ou mais milhões terão perdas incalculáveis de rendimento. O desporto não foge à regra e o ténis, em particular, está numa situação de fragilidade difícil de calcular.
Os jogadores, impedidos de competir, não ganham dinheiro e isso tem um impacto direto ou indireto em todos aqueles que os rodeiam. Muitos têm família que também depende do seu desempenho dentro de campo. Outros consideram mesmo dedicar-se a outra atividade depois desta paragem forçada.
E depois também há toda uma indústria em torno do ténis: as dezenas de torneios já cancelados vão ter implicações económicas gigantes nos promotores e organizações dessas provas — que são feitas por pessoas, que também vão passar dificuldades neste período –, sendo difícil até de prever quantas competições vão resistir depois da pandemia, especialmente ao nível dos torneios ATP 250. Há marcas e empresas que patrocinam vários grandes torneios e que estão a sofrer diretamente com a covid-19 e poderão reduzir o seu apoio (ou mesmo retirá-lo) à modalidade. É de crer que os bons projetos, os mais sólidos e sustentados, aguentem o impacto, mas o prejuízo que cada prova teve também varia consoante a antecedência com que foi cancelada…
Mas voltemos aos jogadores, que juntamente com os seus treinadores e equipas técnicas — que levam por tabela –, são sem dúvida o elo mais fraco nesta história. Não há provavelmente outra modalidade no Mundo que tenha um sistema organizativo tão complexo: o ATP gere o circuito masculino e os Challengers. O WTA responsabiliza-se pelo ténis feminino ao mais alto nível. A Federação Internacional (ITF) organiza a Taça Davis, Fed Cup, todos os torneios ITF, o ténis juvenil e ainda tem a tutela dos torneios de Grand Slam, que na verdade são organizados… pelas Federações locais (e All England Club, no caso de Wimbledon), com o suporte do Grand Slam Board. Ufa, uma confusão. Pelo que não admira que a resposta das entidades, em termos de apoio a quem mais precisa, tenha demorado um pouco… mas chegou.
Seis milhões de dólares serão distribuídos pelas principais entidades a cerca de 800 jogadores, mas Novak Djokovic teve a ideia de juntar a esse valor mais um milhão, oferecido pelos jogadores do top 100 mundial. Dominic Thiem, número três mundial, foi chamado a contribuir com 30 mil euros (enquanto membro do top 5), mas não gostou da ideia. “Há jogadores que não quero ajudar. O ranking ATP tem 2000 mil jogadores e nem todos são profissionais. Nem todos estão dispostos a sacrificar aquilo que eu sacrifiquei para ter a minha carreira. Prefiro escolher eu a decidir quem ajudar. Prefiro ajudar jovens jogadores que precisem. Prefiro apoiar associações de animais, de pessoas que passam fome. Não é esse o caso dos tenistas, na minha opinião”.
Dominic Thiem é um dos tenistas mais bem formados do ténis mundial: para além de um verdadeiro craque dentro de campo, o tenista nascido nos arredores de Viena é um dos atletas mais apreciados pelos seus companheiros de circuito, pelos seus constantes gestos de desportivismo dentro e fora de campo. Apoia associações ambientais, foi nomeado em 2019 para o prémio desportivismo do circuito ATP e raramente emite opiniões que possam ser fraturantes ou deixar outros desconfortáveis. Recentemente, participou também num torneio de solidariedade organizado por Diego Schwartzman para ajudar a Cruz Vermelha da Argentina.
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E talvez tenha sido por tudo isto que a sua declaração de não apoio ao Fundo de Apoio de jogadores tenha surpreendido tanta gente e provocado alguma revolta entre boa parte dos seus colegas, desde os mais velhos, como Dustin Brown, aos mais polémicos, como Nick Kyrgios.
Sim, Dominic Thiem nasceu e cresceu num contexto especial. Os seus dois pais eram treinadores de ténis quando ele pegou numa raquete pela primeira vez, aos seis anos, e tiveram a capacidade financeira para lhe oferecer a possibilidade de trabalhar ainda muito jovem com Gunther Bresnik, um dos melhores técnicos do Mundo, quase em exclusividade. Não, Dominic Thiem nunca passou por grande parte das dificuldades que os tenistas que vão ser ajudados hoje estão a enfrentar. Foi um júnior de topo, a sua passagem pelos Futures foi rápida e até pelos Challengers andou pouco tempo. Mas isso não pode nem deve fazer com que a sua opinião valha menos do que qualquer outro. E também está longe de obrigar que concordemos com ela…
Thiem está no seu direito de utilizar o seu dinheiro da forma que melhor entender e de avaliar esta situação do ponto de vista de experiências que viveu no passado. Basta pensar por exemplo que um dos seus melhores amigos no circuito é Ernests Gulbis, o filho de um milionário com talento de top 10 (chegou a sê-lo) que atualmente ocupa o 162.º posto do ranking mundial. Fará sentido colocá-lo no mesmo saco do 161.º do ranking, Arthur Rinderknech, jovem francês que nunca jogou um quadro principal ATP e nem 100 mil dólares ganhou ao longo da sua carreira? Talvez não.
É impossível não nos emocionar-mos com a carta aberta enviada pela jovem argelina Inês Ibbou a Thiem neste fim-de-semana. A mensagem relata as dificuldades de uma jovem africana vinda de famílias humildes e a forma como as vicissitudes da sua carreira também não têm ajudado a que nesta fase da sua vida ela esteja nas condições ideais para combater um Mundo sem ténis e sem fontes de rendimento para estes jogadores. O testemunho de Ibbou, entretanto apoiada publicamente por vários tenistas de nome, como Nick Kyrgios ou Venus Williams, é mais um exemplo vivo de como há tenistas que, efetivamente, precisam urgentemente de ser apoiados.
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Não creio, no entanto, que faça grande sentido endereça-la a Dominic Thiem e aproveitar a infância e adolescência ‘privilegiada’ do austríaco para de certo modo atacá-lo e fazer um contraponto para quem não nasceu num ambiente de tanta facilidade. Ninguém se atreverá a dizer que o jogador dos arredores de Viena não teve de trabalhar , sofrer e sacrificar-se para chegar ao terceiro lugar do ranking mundial e a três finais de Grand Slam aos 26 anos numa geração com os melhores jogadores de todos os tempos.
O ténis tem muitas pontas soltas para resolver. O coronavírus veio, infelizmente, destapar muitos dos problemas mais graves da modalidade. Mas não cabe a Dominic Thiem resolvê-los, ainda que lhe ficasse bem ser um pouco mais solidário…
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